domingo, 27 de abril de 2014

novos santos

temos dois santos novinhos em folha. por sinal Papas. 
a coisa já estava em marcha quando Francisco chegou. e também não é por aí que o Francisco borra a pintura. fez bem em não mexer no assunto e deixá-lo seguir os trâmites até ao fim. na Igreja há de tudo e não é bom pastor o que divide as ovelhas. 
e fez ainda melhor ao dizer que coloca ao serviço dos pobres o ouro do Vaticano. já vi quem criticasse até isto, dizendo que o oiro acaba antes de acabarem os pobres. mas nisto, quando se quer mexer em alguma coisa, é-se preso por ter cão e preso por não ter. se não fizesse nada pelos pobres, aqui d'el rei que era um sovina e um especulador financeiro. não tenho pachorra para essas críticas. 
quanto ao caso dos Papas e do respetivo processo, é claro que há que dar à coisa da "santidade" um ar de gravidade e seriedade superior ao sentir da populaça. 
o "milagre" é uma boa peneira. ainda que os "milagres" se esgotem no setor da saúde, o que eu, como médico, entendo muito bem. o facto de haver "milagres" em todas as religiões aponta para mecanismos psico-imunitários complexos em que a projeção das dificuldades num ente afetivo mais ou menos virtual, ou até imaginário, pode por em marcha processos de reposição do equilíbrio físico e psíquico. 
não acredito em santos nem deixo de acreditar. já tive na vida momentos em que tive de projetar nessas figuras grandes e muito difíceis problemas. e por isso ou por qualquer outra razão, o resultado não podia ser melhor.
bem-vindos ao panteão, senhores santos novos.

médico a sério

não tenho tido muitas oportunidades de mostrar as minhas habilidades médicas em público, quando alguém se sente mal ou tem um acidente. 
mas ontem aconteceu. alguém se sentiu mal, alguém me reconheceu e zás, lá saltei para a ribalta. 
o maior problema são os mirones, que acorrem de todos os lados, cada qual com suas dúzias de olhos e palpites. 
mandar afastar e calar os espectadores é a parte mais difícil da cena. 
mas o melhor da festa foi o orgulho visível da minha mais nova por ter um pai médico a sério. 
estava convencida que eu era só psiquiatra.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

união Europeia?


ora bem, temos uma União Europeia, uma moeda única e era de supor que tivéssemos uma política de igualização solidária do ponto de vista orçamental e financeiro. 
uma União parece-me que seja uma coisa assim desse tipo. 
os orçamentos excedentários de uns devem cobrir os orçamentos deficitários de outros. caso contrário, para que serve a União? 
mas o que acontece é que os Estados mais "ricos" impuseram um pacto de espartilho aos Estados mais "pobres", como se todos os Estados da União estivessem no mesmo plano económico e social (e por que haveriam de estar?). 
é o chamado "Pacto Orçamental", que faz com que todos os Estados signatários tenham as mesmas regras financeiras, como se fossem todos iguais. e têm de produzir todos ao mesmo tempo cada qual o seu DEO - "documento de estratégia orçamental". 
um tal pacto o que produz é riqueza para os mais "ricos" e pobreza para os mais "pobres", fugindo à regra da complementaridade solidária e fazendo com que os Estados mais "ricos", para quem a União interessa pela livre circulação dos seus produtos, só tirem a parte melhor do sistema, evitando a parte mais desagradável, que é a de contribuírem solidariamente para o desenvolvimento dos mais "pobres". 
e com isso matam a União. primeiro, porque ela mata os Estados que não têm uma economia do tipo dos Estados "mais fortes"; segundo, porque em última análise acaba, mais tarde ou mais cedo, por destruir as vantagens que os Estados "mais ricos" tiram da União económica, financeira e política. porque Estado "mais pobre" não compra a "rico". 
então, ou os "Estados ricos" mudam de política rapidamente, ou adeus União Europeia e moeda única. 
e quero ver os "ricos" a vender aos "pobres" aquilo que produzirem.

sábado, 19 de abril de 2014

páscoa

a natureza enche-se de uma fúria criativa. 
a semente caída à terra tem que "morrer" para soltar-se em uma nova vida. 
chamem-lhe Cristo, Paixão, Ressurreição, e não lhe chamarão asneira alguma. 
é tudo uma questão de níveis e de símbolos. 
podem chamar-lhe Ishtar, a deusa da fertilidade, Éostre, Easter, Páscoa, é tudo o mesmo: morrer e renascer, sexo e multiplicação, ovo e coelho. 
"crescei e multiplicai-vos".

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domingo, 13 de abril de 2014

acordar só para ver o sol

este doce não acontecer coisa nenhuma
deitar-me e acordar só para ver o sol
ser de vez em quando não ser nada
porque não me apetecem pensamentos
que bom não ser nada
que bom não acontecer coisa nenhuma
que bom não pensar nem despensar
deitar-me e acordar só para ver o sol
ah, apetecem-me coisas
que isto de querer acordar só para ver o sol
já é apetecer-me alguma coisa
e se acordo e vejo o sol
já é muito mais
do que não acontecer coisa nenhuma.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

a autenticidade dos evangelhos

as notícias rezam que cientistas comprovam a veracidade (ou será autenticidade?) do "evangelho da esposa de Jesus". e, independentemente da sua veracidade, mesmo que autêntico, esse novo evangelho dá-me que pensar. ao contrário do que é mais imediato julgar-se, Jesus, O Cristo, não era "cristão". ser "cristão" é uma construção posterior, um desenvolvimento. nem sei se Jesus, O Cristo, professaria hoje a religião que lhe é atribuída, ou se a desancaria com a mesma ferocidade com que - diz-se - se atirava aos fariseus. é que o mundo de hoje é de um farisaísmo global, incluindo o "cristianismo" que chegou até nós. agradam-me todos os textos que tragam a figura de Jesus, O Cristo, para um terreno mais humano, mais real, mais vivo. e têm, pelo menos o encanto de desencantar vida de uns restos fósseis. sinto-me sempre mais cristão quando estes textos aparecem. talvez por já estar cansado dos outros.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

isto foi assim

bom
isto foi assim
deu-me o sono
dormi
e caí dentro de mim
e quando dei conta
vi que sou feito
de mil coisas que voam
que não existem
que se mexem
e falam
e gritam
coisas assim sem matéria
acompanhadas de dor ou de prazer
ou de nem uma coisa nem outra
acordei
e voltei a ser
uma coisa que ocupa espaço
fim.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

os dois livrinhos

às vezes ainda há coisas que nos surpreendem. um paciente, com, pelos vistos, uma habitual dificuldade em ser entendido nos difíceis enredos existenciais, ofereceu-me dois livrinhos autobiográficos. estou a lê-los. surpreende-me a leveza do estilo, sem pontuação nem acentos nem maiúsculas, mas incisivo e belo. seguem a nova ortografia. 
embora pequenos, os livrinhos são riquíssimos em pormenores do quotidiano. posso "ver" a casa, os móveis, os aparelhos domésticos, o preço das coisas e dos serviços, o entrar e sair de técnicos, empregados e empregadas. posso "sentir" a mente por vezes lúcida, por vezes transviada, por vezes enredada em cogitações e perceções invulgares. 
valem os dois livrinhos por mil conversas. 
aliás, a oferta, aparentemente, terá resultado da minha confissão de que teria que o conhecer melhor, que uma entrevista apenas não me permitia tirar grandes conclusões. mas talvez já tencionasse dar-mos. de outro modo, como os teria prontos a oferecer? 
tenho lido muita coisa dos meus pacientes. mas nada se compara ao realismo, rigor e beleza destes dois livrinhos.