segunda-feira, 28 de outubro de 2013

privacidade

ela diz-se vítima de violência doméstica, tentativa de violação e mais não sei quantas dessas coisas politicamente corretas e oportunas para uma mulher se queixar do [ex-] marido. 
ele diz que a senhora, cheia de vuiton, botox e silicone, confunde a casa com uma garrafeira e não vê onde deita os pés. 
nascem processos a uma velocidade vertiginosa. cuido que nem haja tribunais suficientes no país para julgar tanta irrelevância. 
ah, e ela pede respeito pela sua privacidade.
claro, se estivessem calados, toda a gente os respeitava. assim é difícil.

sábado, 26 de outubro de 2013

é melhor não vir

seja rei ou não
é melhor não vir.
não quero nenhum Sebastião
com promessas
de Quintos Impérios
madrugadas flamejantes
e cavaleiros andantes.
não há muitos mistérios.
seja rei ou não
é melhor não vir,
porque atrás de um Sebastião
vem Alcácer Quibir.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

morrer? nem pensar!


começa a entrevista chorando. as lágrimas caem-lhe aos borbotões pela cara abaixo. 
deprimida de longa data, a quem têm sido prescritas sucessivas levas de antidepressivos, desenvolveu uma fobia aos lugares fechados. a claustrofobia manifesta-se, em elevadores, teleféricos, túneis, aparelhos de tomografia e lugares afins, por uma crise violenta de ansiedade: fica sem ar, o coração dispara para 160 pulsações por minuto, muitas vezes perde os sentidos. 

sentada na cadeira que lhe é reservada, prescruta em pormenor o gabinete em busca de um sinal de contacto com o exterior. descobre uma janela elevada e faz menção de dizer: - "já estou mais descansada, sempre há uma janela para ver a luz do dia..." 
no decurso da entrevista vou construindo o pretexto para lhe indagar da eventual ocorrência de ideias de suicídio. 
percebe logo onde eu quero chegar e não perde tempo a responder: 
-"morrer? tenho uma fobia horrível à morte. só de pensar que vou ficar debaixo da terra, sem espaço para me mexer e respirar, fico logo abafada! morrer? nem pensar!"

sábado, 19 de outubro de 2013

credores

não é preciso ser militante de extrema esquerda nem comunista para se ser contra a atual política do governo português. basta ser democrata, socialdemocrata ou mesmo democrata cristão. 
basta defender a iniciativa privada e a redistribuição dos excedentes dos mais afortunados pelos que têm menos sorte ou menos recursos. basta reconhecer que a essência do ser humano excede em muito a capacidade ou a esperteza para ganhar dinheiro e obter dividendos. 
basta saber que tão humano é quem tem muito como quem tem pouco. que tão humano é o comendador como o lavrador que lhe cava a terra. que tão humano é o patrão como o empregado. e que uma sociedade baseada na predação é uma indignidade, uma selva. 
dirão: "são os credores, eles mandam, eles é que nos emprestam o dinheiro". pode ser. mas nenhum credor inteligente quer o devedor morto ou falido. a "vontade dos credores" não passa aqui de argumento para impor a selva, a predação, o horror e a morte. não, não são os credores, são os filhos da puta que se escondem por detrás do paletó negro dos credores.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

morte aos velhos e a quem os apoiar!

um velho fica caro e tanto mais caro quanto mais ativo. e tanto mais perigoso quanto mais se mexe. ele sabe demais e saber demais sai caro. se ao menos está entrevado, acamado, paralisado, entubado, pronto, é só tomar conta dele, ir lá de vez em quando ver se ainda não morreu, se o saco do chichi ainda não encheu, se a agulha do soro não saiu. enquanto lá está está a pagar, deixa a sua pensãozinha no lar e tudo bem. 
o pior é se mexe, se fala, se escreve, se perturba, se não está em lar nenhum senão no seu, quer dizer, na sua casa. aí a coisa complica-se. ele recebe a sua pensão e gasta-a a seu belprazer - coisa horrorosa! 
então há que dobrar-lhe a espinha, fazê-lo sentir o peso do cabelo gris, roubá-lo, chamar-lhe parasita e coisas piores. há que submetê-lo ao elder-jacking, arrancá-lo dos seus cuidados e sacar-lhe tudo. deixá-lo estatelado no chão, nu. 
e andam a medicina, a saúde pública, os nutricionistas, os vendedores de banha da cobra e toda essa legião de profetas da imortalidade a gastar o seu latim para isto. 
morte, mas é, aos velhos e a quem os apoiar!

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

o cume

o meu tio cónego - que deus tenha! - era uma pessoa brilhante e de finíssimo humor. fazia graça de tudo e acima de tudo gostava de brincar com as potencialidades da Língua para dizer coisas com vários sentidos. a despesa dos significados menos convenientes de uma frase ficava sempre por conta de quem a ouvisse. como se diz em francês, "honni soit qui mal y pense".
fazia diariamente, manhã cedo, uma viagem de elétrico (ou bonde, como também gostava de dizer) para ir rezar missa num convento de freiras. no percurso, passava pela casa que tinha acabado de mandar construir. era um casarão implantado a meio de um acentuado declive, à beira da estrada por onde passava o elétrico. dependendo do lado da estrada em que se caminhasse, podia muito bem nem sequer se lhe ver o telhado.
uma bela manhã, lá ia ele, desta vez acompanhado de um amigo formal, um poderoso engenheiro da elite dos edis da cidade.
o amigo resolveu comentar:
- ó senhor cónego, a sua casa está bem escondida. quem vai de elétrico mal lhe vê o *cume...
e a resposta pronta e séria do meu tio:
- e quem vai de elétrico já tem muita sorte, senhor engenheiro. porque quem vai a pé nem o cu*me vê...

terça-feira, 15 de outubro de 2013

a espada

lembro-me mais dela quando era nova. acabara de sair do sanatório. era uma mulher afável, doce, amorosa, meiga. tinha aquela bonomia e agilidade própria dos tuberculosos tratados com isoniazida - a mãe dos antidepressivos modernos. 
era muito querida dos sobrinhos. nunca vinha sem uma prenda, por pequena que fosse. lembro-me da prenda mais maravilhosa que recebi: um frasquinho na forma de carro. adorava aquele brinquedo. outra coisa que eu adorava era quando ela trazia nozes. dava um prazer imenso parti-las com pedras e comê-las à dúzia. 
um dia disse que havia de me trazer uma espada. e eu cismava, cogitava, sonhava para que raio queria eu uma espada. na época havia umas espadas de celuloide com que se abria as folhas dos livros que vinham unidas umas às outras, ora de lado, ora em cima. mas achava a prenda, se fosse essa, demasiado prosaica. hum, não seria mesmo uma espada a sério, como a do Afonso Henriques? 
esperei, cismei, sonhei, esperei, e a espada não havia meio de aparecer. até que um dia ela apareceu com um belo carro miniatura, de folha, vermelho, com parachoques niquelados, daqueles carros americanos dos anos 50, que ainda hoje se veem em Cuba. não queria acreditar. aquilo era a tal "espada", melhor, aquilo era "um" espada! 
foi envelhecendo e à medida que envelhecia foi-se tornando mais azeda. não quero lembrar-me dela de velha. esqueço. fico-me com ela de nova. tinha 96 anos. morreu. era a última representante da geração anterior. 
adeus, tia Isaura! vê lá se aproveitas para ficar mais nova.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

a sova da Páscoa

"bater na sua mulher é uma forma de a educar" - diz o xeique Hussein Mohamed Amer, imã do Centro Aljisr de Laval, Quebeque.
faz-me lembrar um pobre paciente da minha consulta hospitalar, serrano, de baixo QI e alto consumo de álcool, que, há uns anos, já não me lembro a que propósito, me dizia que presenteava todos os anos a esposa dele com a "sova da Páscoa".
"e por que lhe bate?" - perguntava-lhe eu, meio confuso. "tem alguma razão especial?"
"não é preciso razão nenhuma - respondia ele, muito seguro. "dou-lhe a sova para a amolecer".
o que é deplorável é que estes costumes pré-históricos tenham sido incorporados em certos construtos religiosos e tenham chegado ao século XXI, ainda que aparentemente mitigados- vejam só - sob a fórmula "mas não severamente". ou seja, como "um medicamento a administrar [pelo marido à esposa] só quando todos os outros não tenham conseguido extirpar a doença".
estou esclarecido. como diria o outro, uma sova da Páscoa, mas não tão grande que mate a mulher. porque, afinal de contas, é ela que lava a roupa e faz de comer.