há notícias que conformam um não sei quê de ridículo, e esta é uma delas.
de acordo com jornais, deputados, intelectuais e que tais, hoje, 27 de junho de 2014, "a língua portuguesa comemora 800 anos".
é que, nesta data, há 800 anos atrás, o nosso rei D. Afonso II mandou redigir o seu testamento em língua vernácula, isto é, em Galego-português, coisa que aconteceu pela primeira vez, já que até aí os documentos oficiais eram escritos em Latim medieval.
mas isso tem que ser visto no seu significado e no seu contexto.
porque, senão, parece que "faz hoje oitocentos anos" que alguém se lembrou de inventar do nada uma língua nova.
a mim e a muito boa gente parece outra coisa: parece-me que se Afonso II se lembrou de redigir o seu testamento em língua vernácula é porque esta já existia muito antes e já ninguém entendia o latinório medieval dos tabeliões sem recurso a especialistas.
quanto à nossa língua, bom, é muito mais antiga que isso. uma coisa é a escrita de documentos oficiais, outra coisa, completamente distinta, é a língua falada efetivamente no dia a dia das pessoas. o próprio rei D. Afonso, certamente, não a mandou inventar de propósito para o seu testamento. há até quem diga que a falava desde que deixou a chucha. e aposto que vai ser muito difícil dizer quando é que a nossa língua começou a ser falada. porque a nossa língua não faz anos, fala-se.
PS: o que D. Afonso II fez foi uma opção política entre a língua "litúrgica" e a língua vernácula em documentos oficiais, um processo recorrente ao longo da história, quer em assuntos civis quer em assuntos religiosos. por exemplo, as Igrejas Coptas mantêm o Copta como língua litúrgica, apesar de extinta há quatro séculos e apesar de os fieis falarem Árabe; já a Igreja Católica Romana, nos inícios dos anos 60 do século XX, por ação do Concílio Vaticano II, substituiu a língua litúrgica, o Latim, pelas línguas vernáculas faladas em cada país. ora, as línguas vernáculas já lá estavam e continuaram. o que acabou foi o Latim. por isso se pode afirmar que o testamento de D. Afonso II não marca o nascimento do Galego-português, o que marca é a morte do Latim (medieval) como língua tabeliónica em Portugal.